«A apresentação pública do projecto do Terreiro do Paço é um momento simbólico importante. Hesitei sobre se deveria participar no debate. Tenho a maior consideração, respeito e estima pelo arq. João Biencard Cruz, que me sucedeu na Frente Tejo e que convidara para meu braço-direito; fui eu quem tomou a decisão de pedir ao arq. Bruno Soares - um grande arquitecto e uma pessoa de bem, como Biencard - para continuar o trabalho que estava já a fazer na área. Mas, tudo ponderado, acho que devo falar.O objectivo que definira era que se fizesse um restauro da praça, tendo presente que ela é simultaneamente uma praça real setecentista e um espaço da sociedade burguesa que se lhe seguiu. O caderno de encargos para o projectista era conciliar o aparato com o conforto, mantendo a majestade da função inicial com os usos para os cidadãos e os turistas que a adaptassem à realidade do século XXI.
Os constrangimentos de tempo impostos pelas comemorações do Centenário da República, a necessidade de que não fosse ultrapassado o orçamento e o facto de a criatividade contemporânea não ser manifestamente essencial, levou-me a defender a adjudicação directa, ao contrário de todos os outros projectos da Frente Tejo, que seriam feitos por concurso público internacional.
Essa opção de adjudicação directa ia com as seguintes condições: (i) um grupo multidisciplinar de especialistas nacionais e estrangeiros seria ouvido e acompanharia o trabalho de Bruno Soares, (ii) a sociedade Frente Tejo interviria em diálogo permanente no processo de reflexão e criação do arquitecto, aprovando o anteprojecto; (iii) o debate público seria aberto a seguir; (iv) a sociedade Frente Tejo aprovaria o projecto, após tal debate, com as alterações que se justificassem.
Quando convidei Bruno Soares disse-lhe de forma clara que discordaria totalmente de qualquer projecto que optasse por desrespeitar o conteúdo ideológico e patrimonial da praça; designadamente, desejava que o projecto fosse de restauro quando possível e que o arquitecto se "apagasse" perante o património histórico-cultural existente, revelando a "modéstia" que realidades históricas deste valor exigem a quem delas se ocupa.
Sinto, por isso, que tenho o dever de afirmar que o an-teprojecto divulgado nunca teria sido aprovado por mim para submissão a discussão pública. Não acredito, aliás, que os especialistas que começara a consultar concordassem com a opção. Em primeiro lugar, o projecto afecta parte do núcleo essencial da praça. Refiro-me ao Cais das Colunas, que foi vítima do projecto do túnel do metropolitano, mas que não deveria ser alterado na sua imagem e presença. O Cais das Colunas é uma peça do século XVIII e faz parte da nossa memória colectiva. Era por ali a entrada solene em Lisboa durante séculos e até aos aviões. Não pode por isso ser alterado com a contemporânea criação de um círculo pelo terreiro a dentro. O tema chegou aliás a ser falado (alguém chegou a propor-me que fosse alargada por aterro a praça do lado do rio para facilitar o trânsito!) e fui sempre muito claro quanto a isso: a proporção da praça e os seus elementos definidores não podiam ser alterados.
Em segundo lugar, discordaria completamente da solução acrónica dos traçados em losangos, parece que inspirados em cartas de marear, que destroem o equilíbrio da praça, trazendo-a para um registo cultural inadequado. A praça era um terreiro e como tal deverá manter-se a grande parte central, evidentemente com a utilização de materiais modernos que graficamente exprimam essa realidade histórica, como está aliás proposto e mereceria a minha concordância.
Em terceiro lugar, opor-me-ia a que esses losangos sejam marcados com pedra lioz que ressalta cromaticamente do terreiro e lhe dá um movimento que seria noutro espaço sem esta carga cultural provavelmente uma excelente solução, mas aqui é como "pôr-se em bicos de pés" sobre a imensa dignidade dos quatro hectares da praça. O Barroco é um tempo de movimento, o Terreiro do Paço bem o exemplifica com a ondulação do Cais das Colunas, com as suas fachadas e com os efeitos da luz sobre elas, mas nem todo o movimento é barroco. A estrutura quadricular da praça e dos edifícios, a simetria e o eixo da Rua Augusta estendendo-se visualmente pelo estuário, servem o projecto ideológico do iluminismo. Aqui são desrespeitados em absoluto pelos traçados que sem coerência lhe pretendem acrescentar no século XXI.
Em quarto lugar, recusaria o traçado marcado no terreiro que pretende prolongar a Rua Augusta até ao rio, fazendo intervir um projecto de espaço público moderno e também acrónico em relação à majestade e à proporção existente; e isso com a agravante de que destrói a coerência entre as zonas de conforto e de passeio das arcadas e a zona de aparato da parte central, sem utilidade, e ainda mais sem necessidade, também assim contribuindo para uma cacofonia visual e policromática que é o contrário da modéstia com que se devia enfrentar o expoente de património edificado e ideológico que ali temos.
Dito isto, em relação ao que na Internet pude ver, o resto do anteprojecto parece-me corresponder integralmente a um programa coerente e adequado às funcionalidades de trânsito e de peões, há muito esperado. Reconheço que as características pessoais de Biencard Cruz e de Bruno Soares favorecem que o debate público seja por eles escutado e que soluções apresentadas sejam revistas. Mas se já era difícil cumprir calendário sem pagar preços exorbitantes nas empreitadas se me tivessem deixado trabalhar, depois do tempo perdido tudo se complicou mais. E as eleições autárquicas do Outono serão também um factor de grande pressão.
Por isso apelo para que o calendário político não obrigue a erros que serão depois na prática irreparáveis. O Marquês de Pombal fez obra, não sem antes os seus arquitectos estudarem, ponderarem, apresentarem alternativas, discutirem e com isso criou uma das melhores obras urbanas da Europa setecentista. Não queiramos ganhar--lhe em velocidade, já que dificilmente o venceríamos em qualidade.»
José Miguel Júdice, Público
domingo, 17 de maio de 2009
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