sábado, 30 de dezembro de 2017

Financiamento dos partidos e bom senso

“O que se passou no Parlamento com o processo de alteração à lei de financiamento dos partidos foi falta de bom senso. Falta de bom senso na forma e no conteúdo.”

 

A polémica gerada pelas alterações ao financiamento dos partidos políticos pode ser um pretexto para discutir a forma como o Estado deve apoiar os partidos e para recuperar a confiança nos políticos. Mas não vai ser fácil…

A forma como o processo de alterações legislativas ao financiamento partidário foi gerido pelo Parlamento (todos os partidos aceitaram o processo) é contrária à responsabilidade e à transparência que se exigia numa matéria sensível para saúde da democracia.

O ambiente de desconfiança que rodeia a acção política deve merecer, por parte dos agentes políticos, um especial empenho para contrariar o preconceito existente relativamente à política. Se, por princípio, os políticos devem ser particularmente rigorosos para poderem ser exemplo, e assim merecerem a confiança dos cidadãos, a consciência de que existe uma imagem negativa à partida deve conduzir a um redobrado esforço para demonstrar a probidade da sua acção.

A democracia é uma conquista popular e, embora relativamente recente em Portugal, é hoje tida como um pressuposto basilar da organização da sociedade. Para além das instituições que corporizam o Estado, os partidos são entidades essenciais para o funcionamento da democracia.

Defender a organização do Estado e a democracia tem de ser também a partilha da responsabilidade pelo seu funcionamento como instrumento para o bem-estar comum. A responsabilidade começa pela capacidade de participar, escolher e assegurar os encargos do seu funcionamento.

O que se passou no Parlamento com o processo de alteração à lei de financiamento dos partidos foi falta de bom senso. Falta de bom senso na forma e no conteúdo. Um processo em que todos reagiram com desconforto transmitindo um sentimento de culpa inadmissível e com soluções inaceitáveis, tais como a generalização da isenção do IVA ou a retroactividade da sua aplicação.

Com esta iniciativa legislativa os partidos suscitaram uma ideia de tratamento de privilégio em benefício próprio sublinhado com um raro consenso e uma enorme precipitação.

A polémica gerada em torno da lei de financiamento dos partidos tem de ser o ponto de partida para um regime de maior transparência nas fontes de financiamento partidário directo e indirecto. Importa que se saibam quais as subvenções estatais, os benefícios fiscais, mas também os custos suportados com assessorias e outros meios logísticos. O mesmo deve ser conhecido relativamente aos apoios privados, sejam monetários ou outros, devendo saber-se a respectiva origem. Esta informação deve ser facilmente escrutinável.

Mas esta deve ser também uma oportunidade para discutir a componente pública e privada do financiamento partidário. Devem existir limites? Qual deve ser a componente pública e privada do financiamento partidário?

Importa também separar o que é considerada efectivamente acção política do que são iniciativas complementares que não são exclusivo partidário. Esta definição deve concorrer para limitar os benefícios fiscais a conceder aos partidos. Não se podem tratar todas as iniciativas como políticas apenas por serem organizadas por partidos.

Importa recuperar bom senso na questão do financiamento dos partidos. Começando com um acto de humildade admitindo o erro e corrigindo-o, eliminando aspectos inadmissíveis da lei, reforçando os mecanismos de transparência e de escrutínio e promovendo uma discussão ponderada sobre o financiamento dos partidos políticos. Apenas assim se justificará um consenso. É a democracia que está em causa!


texto publicado no jornal Sol, 30 de Dezembro de 2017

domingo, 24 de dezembro de 2017

A protecção civil foi só o pretexto

O EPISÓDIO sobre a taxa de protecção civil em Lisboa resume bem duas características que constituem um padrão da actuação socialista: a ligeireza e precipitação com que a Câmara de Lisboa conduz alguns processos e a tendência insaciável de sobrecarregar os munícipes com taxas, tarifas e impostos.

Em 2015, quando criou a Taxa Municipal de Protecção Civil, a Câmara preocupou-se apenas em substituir a receita que arrecadava com a taxa de conservação de esgotos, que teve de extinguir. Ou seja, criou uma taxa à pressa e de forma oportunista para garantir essa receita. E nunca a justificou adequadamente.

DESDE O INÍCIO, a oposição na CML chamou a atenção para a ilegalidade e injustiça dessa taxa. Ilegal, por não respeitar o conceito e o propósito para que fora criada; injusta, por não se aplicar igualmente a todos os munícipes. Ano após ano foram sendo apresentadas propostas de suspensão ou de revogação que esbarraram na teimosia e avidez da maioria que governa a Câmara.

Como foi repetidamente denunciado, a taxa de protecção civil configurava um imposto encapotado e não uma taxa. Aliás, o simples facto de estar indexada ao IMI constituía, na prática, um adicional a esse imposto. Por outro lado, nunca foi apresentada nenhuma justificação (que a lei obrigava) da contraprestação do município aos visados. Mais: mesmo que fosse identificada a prestação de algum serviço concreto do município decorrente do pagamento da dita taxa, seria sempre injusto -- pois não diferenciava esse benefício entre os tributados (os proprietários) e os demais, violando o princípio da igualdade.

O TRIBUNAL Constitucional veio agora confirmar o que todos vinham denunciando: o que a CML criou foi um imposto e não uma taxa. Para além de demonstrar a ilegalidade cometida, o TC aponta ainda a injustiça pelo tratamento desigual dos munícipes.

O presidente da Câmara anunciou a restituição dos valores indevidamente cobrados. Na verdade, não faz mais do que a obrigação decorrente da inconstitucionalidade. O que importa sublinhar é que o erro irá causar transtorno aos cofres do município e já causou transtorno aos munícipes, com os encargos que tiveram de suportar por uma imposição precipitada, injusta, ilegal e inútil. O único que não terá consequências do seu acto será o próprio presidente. Essa é uma injustiça que se manterá.

O PRESIDENTE da Câmara vem alijar responsabilidades, passando a resolução do problema do financiamento da protecção civil para o Parlamento. Mas, na verdade, o que se passou foi que a CML desenhou uma taxa sem cumprir os requisitos legais. O problema não é da lei mas do seu incumprimento.

No que se refere à protecção civil de Lisboa, esse não será um problema – pois há muitos anos que a capital dispõe de um serviço exemplar, com os recursos de que o município já dispunha.

O que está em causa é a forma como se utilizam os recursos financeiros. A Câmara é uma estrutura pesada e pouco eficaz. É aqui que importa fazer reformas, tornando-a mais eficiente e evitando sobrecarregar os lisboetas com mais taxas, tarifas e impostos.

O episódio da Taxa Municipal de Protecção Civil em Lisboa transmitiu uma péssima imagem de Lisboa, causou dano à credibilidade da gestão municipal e constituiu uma demonstração do desrespeito pelos cidadãos. Importa que sirva de lição.


texto publicado no Jornal Sol, 23 de Dezembro de 2017

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

O Estado a que chegámos

Rapidamente passámos de um Estado tutelado pela troika a um Estado fraco (ainda não falhado mas a falhar demasiadas vezes).

O Estado está a falhar nas suas funções mais básicas e no respeito pelos portugueses que são a sua essência. Em apenas uns poucos meses sucederam-se em Portugal factos graves que, de tão frequentes, quase foram banalizados. Mas mais grave foi o desrespeito com que os responsáveis lidaram com esses acontecimentos.

O roubo de material militar que se verificou em Tancos, por si só foi grave. Mas tão grave quanto o acontecimento foi a ausência de um esclarecimento, a irresponsabilidade da estrutura militar e a falta de autoridade dos responsáveis políticos. Se tal não fosse suficientemente preocupante quanto à falta de robustez do sistema de defesa, as atitudes dos responsáveis militares e políticos foram inadmissíveis entre declarações, incertezas e falta de esclarecimentos. Entretanto, passados estes meses, continua sem existir uma explicação e sem ninguém assumir qualquer responsabilidade.

Em Junho ocorreu o incêndio de Pedrógão que matou mais de 60 pessoas. Uma tragédia com consequências nunca antes verificadas e em que tudo falhou. Falharam a prevenção, as comunicações, a coordenação e falhou a protecção das pessoas. Mas sobretudo falhou a assunção de responsabilidades.

Em 15 de Outubro verifica-se o mais devastador dia de incêndios com centenas de ocorrências e dezenas de vítimas mortais, com uma das mais importantes matas nacionais destruída e uma vez mais tudo falha. Mesmo com a previsão das condições adversas não houve prevenção eficaz, não estavam meios adequados mobilizados, falhou a coordenação e mais uma vez faltou responsabilidade.

A cena de espancamento observada à porta de uma discoteca de Lisboa foi a revelação de uma prática demasiado frequente na noite de Lisboa. Ficámos a saber que a polícia há muito que tem conhecimento mas que não tem sido capaz de evitar estas situações de modo a garantir a segurança dos cidadãos.

O surto de Legionella verificado no hospital de São Francisco Xavier com a ocorrência de vários mortos e dezenas de pessoas afectadas indicia falhas graves num hospital público. Este acontecimento grave foi ainda acompanhado pela inacreditável interrupção de um velório para levantamento de um corpo por parte do ministério público sem qualquer sensibilidade ou respeito pelas pessoas.

Mais recentemente, o episódio da irresponsabilidade do Estado foi o jantar no Panteão Nacional. Um triste acontecimento que faz já parte do anedotário nacional pelo insólito da situação mas cuja gravidade, para além do facto em si mesmo, reside na ausência de consequências e no “passa culpas” a que se assistiu.

Também o recente episódio do anúncio da deslocalização do Infarmed para o Porto revela a forma ligeira e atabalhoada com que o Estado é gerido. Um processo que terminou com a assunção do óbvio: o primeiro-ministro admitiu que o processo foi mal conduzido – um eufemismo para a precipitação e irresponsabilidade evidente.

Em 2011 o país chegou à beira da bancarrota. O programa de assistência financeira internacional a que foi sujeito transformou Portugal num Estado com a soberania tutelada. Tendo ultrapassado esse período, Portugal parece regressar a uma situação de debilidade de carácter estrutural. O país que foi fragilizado financeiramente está agora a demonstrar fragilidades nas funções do Estado. O Estado volta a falhar. De forma diferente à de 2011, mas a falhar. Em comum é a circunstância de ser o partido socialista (agora apoiado pelo partido comunista e pelo bloco de esquerda) a governar.

Esta sequência de acontecimentos revela falhas na autoridade do Estado, falhas na responsabilidade do Estado e, infelizmente, demasiada condescendência na exigência dos cidadãos. É na exigência que a mudança terá de começar.

António Prôa


texto publicado no jornal Sol